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Notas para um Manifesto-Movimento pela Cultura

1 – Cultura é mais do que as Letras, as Artes e as Ciências. Cultura é mais do que as culturas, com a sua língua e a sua história, as suas tradições, usos e costumes. Cultura é o cultivo de todas as qualidades naturais que fazem de cada indivíduo um ser humano mais pleno, realizado, consciente, criativo, solidário, bondoso e feliz. Cultura é o cultivo de tudo o que conduz a superar os limites e obstáculos, externos e internos, à tarefa sempre em aberto de humanizar os humanos na relação com toda a comunidade dos seres vivos, os outros seres humanos, os animais e a natureza.

2 – Um ser humano culto é mais do que um ser humano com formação académica, conhecimento erudito ou informação ampla. Um ser humano culto é aquele que promover a Cultura, a consciência da interconexão de todas as formas de vida e o empenho no bem comum de todos os seres vivos e da Terra. Ser culto é respeitar o valor intrínseco de todos os seres, manter uma conduta de não-violência e não sobrepor desejos e interesses, pessoais ou colectivos, à natural aspiração à paz, ao bem-estar e à felicidade de toda a população do planeta, humanos e animais. Ser culto é procurar pensar, falar e agir sempre em função do bem de tudo e de todos, colocar-se no lugar do outro antes de tomar decisões que o vão afectar e não privilegiar ou excluir nenhum ser por motivos de estatuto social, orientação sexual, ideologia, nacionalidade, etnia, religião ou espécie.

3 – A Cultura é um processo simultaneamente pessoal e social do qual depende a real evolução dos grupos, das nações e da civilização como um todo. Do grau de evolução cultural depende o grau de realização e o sentimento de bem-estar pessoal e social nos grupos, nas nações e na civilização. O verdadeiro progresso dos indivíduos, dos grupos, das nações e da civilização não se mede pelo crescimento do Produto Interno Bruto, mas pelo aumento do nível médio de Cultura, traduzido em vidas mais conscientes, éticas, saudáveis, sustentáveis e felizes.

4 – Promover a Cultura, ou seja, investir no surgimento de seres humanos mais plenos, é um direito e um dever de todos. É, além disso, o principal dever e missão das famílias, das instituições pedagógicas, dos governos e do Estado. É da promoção da Cultura que depende o integral progresso das nações, pois sem Cultura o mero progresso económico, tecnocientífico e “cultural” orienta-se inevitavelmente para fins lesivos das aspirações fundamentais dos seres humanos, da restante comunidade dos seres vivos e da harmonia com a Terra. Sem Cultura, os indivíduos, os grupos, as nações e as civilizações cedem à violência, à competição e à guerra – bélica, económica ou financeira – de todos contra todos, traduzida na opressão e exploração dos mais vulneráveis, humanos e animais, e na destruição dos recursos naturais, dos ecossistemas e da biodiversidade.

5 – É isso que acontece no actual ciclo de civilização, dominado por uma nova crença mítico-religiosa, a do crescimento económico infinito num planeta com recursos naturais finitos. É esta inquestionada e insustentável ilusão a força anónima que a partir dos poderes instituídos e com o auxílio do marketing e da publicidade impregna, coloniza e intoxica o imaginário das populações, determinando todas as escolhas, mobilizando todas as energias e subordinando todas as vidas ao aumento da produção e do consumo para maximizar o lucro num tempo mínimo. É esta força vampiresca que está a destruir os valores e as relações sociais, a diversidade cultural, a biodiversidade e os ecossistemas para exclusivo benefício da minoria na qual a riqueza se concentra e prejuízo global da comunidade dos seres vivos e do planeta. Vivemos num novo obscurantismo totalitário cujo sinal mais evidente é a ausência quase completa do sentido da verdadeira Cultura nas instituições sociais, científicas, pedagógicas, políticas e económicas, nos meios de comunicação social e em muitas instituições religiosas e culturais. O desconhecimento e desprezo pela Cultura começa nas famílias e prossegue em todos os níveis de integração escolar, profissional e social.

6 – A nova religião laica, sobretudo nesta fase capitalista desesperada e selvagem, sacraliza o trabalho, a eficiência, a competição, a pressa, a produtividade, o consumo, o lucro e o individualismo egocêntrico sacrificando o tempo livre, o jogo, os ritmos naturais, a festa, a comunhão, a cooperação, a amizade, a troca e a gratuidade, ou seja, tudo o que milenarmente assegura os vínculos sociais e a alegria e felicidade humanas. Esta alienação, verdadeiro estado patológico normalizado pela (in)cultura dominante, resulta numa regressão civilizacional e num imenso holocausto de vidas sacrificadas a actividades, funções e profissões entediantes, burocráticas, fúteis, inúteis ou francamente nocivas, das quais se passa para distracções e diversões massificantes que apenas renovam o círculo vicioso da escravidão e perda de consciência, retirando tempo, energia e interesse no desenvolvimento pessoal e cultural profundo. A maioria dos seres humanos perde as vidas a ganhá-las, constrangida a viver aquém das suas mais autênticas potencialidades e contra as suas mais profundas aspirações, o que gera um grande mal-estar existencial, psicológico e social, associado a tédio, tristeza e depressão, o sentimento crescente da falta de sentido da vida, o aumento da violência, da toxicodependência e da criminalidade, que acrescem às consequências do modelo económico dominante: o alargamento do fosso entre ricos e pobres e Norte e Sul, a instrumentalização das vidas de humanos e animais, a redução da diversidade cultural, a destruição da biodiversidade e o risco de um colapso ecológico-social sem precedentes.

7 – O sentido da verdadeira Cultura permanece todavia latente na nossa natureza profunda e no bom coração dos seres humanos (muitas vezes nas populações e culturas menos “cultas” ou escolarizadas segundo o modelo globalizado) e a urgência da sua redescoberta é assumida por cada vez mais projectos e movimentos alternativos, cívicos, sociais, culturais e espirituais, com uma visão mais integral da realidade como uma totalidade orgânica onde todos os seres e formas de vida estão interligados, não sendo possível realizar o bem de uns sem visar o de todos. Há que promover o conhecimento mútuo, a convergência e a coordenação destas iniciativas num Movimento global de alternativa ao obscurantismo, incultura e barbárie dominantes, que assuma a tarefa de desintoxicar e despertar consciências e operar a transição para um Mundo Novo, possível Aqui e Agora.

Paulo Borges
24/01/2022

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